Quando as primeiras publicações que tentavam divulgar no Brasil o conceito de Responsabilidade Social Corporativa (RSC) começaram a servir como base para estudos, uma das premissas que muito se ouvia é que pagar impostos é obrigação empresarial e não poderia ser confundida com responsabilidade social. Às empresas mal intencionadas, que costumavam usar o pagamento de impostos como roupagem de generosidade, para confundir os incautos, até mesmo na mídia, a resposta deveria ser uma só: “Não pagar impostos é crime, e pagá-los é obrigação”. O medo é que a falsa “bondade” se espraiasse como verdade.
Este é só um dos muitos exemplos citados no relatório da ActionAid , organização que centra esforços no combate à pobreza mundial fazendo e publicando estudos que podem levar à raiz desse problema.
Aqui vale um parêntesis: não dá para esquecer que a desigualdade social, comprovada em dados coletados por Thomas Piketty, o economista francês que ficou famoso com seu “O Capital do Século XXI”, existe também por causa das corporações. A desigualdade dos salários, diz Piketty, é o eixo da roda que movimenta a desigualdade social. E quando uma empresa deixa de pagar os impostos devidos, certamente parte desse dinheiro vai para engordar ainda mais os salários dos altos executivos e aumentar o fosso entre ricos e pobres. É só mais um dos problemas.
Fecha parêntesis, voltemos aos dados do documento, que recebeu o nome de “Maltratado” e foi baseado em pesquisas que, pela primeira vez, examinaram mais de 500 tratados fiscais internacionais, revelando quais são mais prejudiciais aos países pobres. Esses tratados geralmente garantem que o dinheiro corporativo saia sem taxação das fronteiras dos países pobres, em direção aos mais ricos, agravando a desigualdade e a pobreza.
Em 2004, um tratado fiscal assinado entre Uganda e Holanda tirou do país africano o direito de tributar rendimentos pagos aos proprietários de corporações de Uganda quando esses moravam na Holanda. Dez anos depois, segundo cálculos feitos pela ActionAid, pelo menos no papel a metade do investimento estrangeiro na Uganda é de propriedade da Holanda.
Uma empresa americana que investe em países africanos pode obter isenções fiscais graças a esse tratado fiscal. “Trata-se de uma reestruturação societária que pode ser legal mas é sempre oportunista”, diz o relatório.
Reino Unido, Itália e Alemanha têm o maior número de tratados que restringem ganhos de países menos desenvolvidos da Ásia e da África Sub-saariana. China, Kuwait e Ilhas Maurício (paraíso fiscal) também têm um número crescente de tratados semelhantes.
O Brasil aparece no relatório como exemplo de país que faz negócios e recebe investimentos de outras nacionalidades sem um tratado fiscal em vigor. Com os Estados Unidos, o país tem uma relação de comércio e investimento bem grande. Em 2014, por exemplo, o Brasil recebeu investimentos norte-americanos da ordem dos US$ 112 bilhões. Com Alemanha, Suíça e Inglaterra, o Brasil também tem relações milionárias.
O grande “boom” de assinatura de tratados aconteceu há 20 anos e eles continuam valendo até hoje. Basicamente decidem o quanto, e mesmo se, os países podem tributar empresas multinacionais e outras atividades entre fronteiras. E foram feitos para dar segurança aos negócios. Se a taxa de imposto definida no tratado fiscal é menor do que a taxa imposta pelo país onde a empresa está produzindo, ela pode recorrer ao tratado e pagar menos impostos do que as que produzem localmente. Resultado disso? Uma concorrência desleal, o que afeta a economia, sobretudo quando o país já é pobre. Os pequenos negociantes locais acabam tendo que cobrar preços mais altos por terem que pagar mais impostos. E quem compra geralmente não sabe disso.
O foco da ActionAid ao produzir o relatório é deixar claro o quanto os tratados fiscais podem impactar a capacidade de os Estados pobres arrecadarem. E, dessa forma, terem recursos para investir em serviços fundamentais para o combate à pobreza e a redução de desigualdades, como educação e saúde públicas de qualidade.
Os tratados fiscais são voluntários e podem ser renegociados ou cancelados. Trata-se de um acordo entre dois países que pode dividir ou diminuir o ganho de um deles. Mas, mesmo quando são muito antigos têm o mesmo valor de quando foram assinados pela primeira vez, caso não tenham sido renegociados. Atualmente existem cerca de três mil tratados fiscais em todo o mundo, e mais da metade deles são assinados entre um país pobre e um país desenvolvido.
Ruanda, um país africano, é um exemplo forte de renegociação quando, em 2013, decidiu se sentar e partir para um tratado mais claro, de interesses e objetivos mais transparentes, com as Ilhas Maurício.
Imposto não é uma bala mágica. Mas certamente ajuda bastante os países pobres a cuidarem das privações de seus habitantes. Portanto, as corporações globais que estão usando mecanismos para se safarem daquilo que precisam pagar estão sendo mais do que irresponsáveis. Elas estão contribuindo para que o mundo se torne mais e mais desigual. Empresas com esse perfil não podem ter mais espaço no século XXI.
Por outro lado, vai mal também um modelo econômico que pode obrigar governantes a se aceitarem se tornarem reféns de corporações que põem o lucro acima de qualquer ética. Quando fazem isso, estão seguindo as regras de um movimento ao qual se dá o nome de desenvolvimentismo.
O desenvolvimentismo, incansavelmente criticado por estudiosos que buscam pensar um novo paradigma, começou por volta dos anos 50 e ainda hoje é referência para muitos. O economista chileno Manfred Max-Neef, fundador e diretor do Centro de Alternativas do Desenvolvimento (Cepaur) e Prêmio Nobel Alternativo no Parlamento sueco em 1983, destaca como um dos problemas ao desenvolvimentismo a estrutura produtiva, particularmente a indústria, “que se mostrou tremendamente concentradora de recursos”*.
“Para o desenvolvimentismo, o crescimento é uma condição econômica que traz o desenvolvimento. E essa teoria acredita que a concentração estimula o crescimento, o qual é demonstrável estatisticamente. No entanto, o desenvolvimentismo, ele próprio, reconhece que há limites para o crescimento, porém, não consegue controlá-lo”, escreve o autor chileno.
Assim sendo, faz sentido que uma das sugestões do relatório da ActionAid seja endereçada às multinacionais que fazem lobby junto a governos no sentido de conseguir o melhor tratado fiscal. Melhor, não para a população local, mas para seus próprios ganhos.
“As empresas deveriam tentar estabelecer uma igualdade de condições em vez de um sistema distorcido, concebido apenas para alguns poderosos atores corporativos. Elas também podem tentar evitar tratados prejudiciais”, finaliza o relatório.
Não custa avisar. Quanto mais informação, melhor. Até porque ainda vemos hoje tentativas de mascarar a responsabilidade social. E não será muita surpresa ver uma dessas empresas alardeando, em propagandas, o bem que fazem ao país onde estão instaladas.
Fonte: Site de Notícias G1