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31/03/2015

Os perigos da guerra fiscal

O congresso nacional está a um passo de sacramentar e prorrogar por muitos anos a guerra fiscal entre Estados, dando caráter oficial a uma das mais graves perversões da ordem tributária. Se for aprovado o projeto de convalidação, manutenção e ampliação de incentivos – até agora ilegais – concedidos a empresas, será dado sinal verde para novos leilões de investimentos em troca de isenções ou reduções de impostos. Com isso, será prejudicado qualquer projeto de maior alcance, mais sério e mais consequente de reforma do sistema tributário.
Governadores continuarão dispondo de um amplo e perigoso arbítrio para administrar o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Com isso, a colcha de retalhos da tributação estadual será mantida. O novo sinal de alerta soou na quarta-feira passada, quando senadores aprovaram, em plenário, regime de urgência para votação do Projeto de Lei Complementar do Senado n.º 130/2014.
Na versão original, da senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO), o projeto permitia a convalidação dos benefícios fiscais e financeiros vinculados ao ICMS e, além disso, dispensava as empresas de restituir os créditos acumulados por meio desses incentivos. Pela Lei Complementar n.º 24, de 1975, um Estado só poderia conceder vantagens desse tipo com aprovação unânime dos membros do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), formado por todos os secretários de Fazenda. Os incentivos foram concedidos sem esse requisito. Foram mantidos porque só o Supremo Tribunal Federal (STF) poderia determinar, de forma conclusiva, sua ilegalidade. Além disso, um governador, mesmo depois de uma condenação, poderia recorrer a subterfúgios para manter os benefícios.
A devolução dos créditos – de centenas de bilhões de reais – seria inviável. A solução razoável seria encerrar a guerra, simplesmente, e começar vida nova. Mas o relator do projeto, senador Luiz Henrique (PMDB-SC), tomou direção muito diferente. Além de propor a remissão dos créditos, sua emenda abre caminho para a reinstituição e a prorrogação de isenções, incentivos e benefícios, além de sua extensão a outros contribuintes estabelecidos no Estado. Por essa versão, cada unidade federada pode aderir aos benefícios concedidos ou prorrogados por outra unidade da mesma região.
Os prazos de prorrogação variam: 15 anos para os programas de fomento industrial e de infraestrutura, 8 para os de manutenção ou expansão de atividade portuária e aeroportuária, 3 para as operações interestaduais com produtos agropecuários de extração vegetal in natura e 1 para os demais.
Além de propor o prolongamento e a expansão da guerra fiscal, o projeto altera as condições de aprovação dos benefícios, eliminando a exigência de unanimidade. Bastarão os votos de dois terços das unidades federadas (os 26 Estados e o Distrito Federal) e um terço das unidades integrantes de cada uma das cinco regiões do País. Será fácil, portanto, reunir os votos dos governos interessados em manter a guerra fiscal. Essa proposta desmoraliza definitivamente o Confaz.
Aprovado esse projeto, o sistema do ICMS continuará sendo uma colcha de retalhos, com 27 legislações. Essa desordem foi facilitada por um erro de origem: o ICM, antecessor do ICMS, surgiu em 1967 como tributo estadual. Na Europa, a competência para cobrar o imposto sobre o valor agregado havia sido atribuída aos governos centrais. Os brasileiros copiaram o modelo sem esse detalhe. O Confaz, criado para garantir a harmonia do sistema, foi desmoralizado em pouco tempo.
Desde os anos 1980 se discutem os defeitos do sistema tributário nacional e propostas de reforma. A necessidade de uma ampla mudança ficou mais evidente nas décadas seguintes, quando se tornou inadiável uma integração maior do País no mercado global. Os tributos brasileiros, a começar pelo ICMS, prejudicam seriamente a competitividade do País. A presidente Dilma Rousseff deveria incluir uma ambiciosa reforma nas prioridades do novo mandato. Mas será difícil de mobilizar os Estados para a reforma, se a convalidação dos incentivos da guerra fiscal for aprovada antes do debate mais amplo.
Fonte: O Estado de S. Paulo