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13/03/2020

Por uma reforma tributária justa

Professora de Direito Tributário elogia ação da Fenafisco e Oxfam .

Artigo: Tathiane Piscitelli*

As atividades da Comissão Mista do Congresso Nacional para a reforma tributária, iniciadas nesta quarta-feira, já começaram com discussões acaloradas entre seus membros. Como noticiou o Valor, a ausência de uma projeto de reforma por parte do governo tem irritado os parlamentares. Como é sabido, o foco do debate daquela comissão são as propostas de emenda constitucional que alteram a tributação do consumo no Brasil.

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Em paralelo ao imbróglio no Poder Legislativo, a Fena!sco, Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital, e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, CADHu, com o apoio da Oxfam Brasil, propuseram, perante o

Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, para o para reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema tributário brasileiro. O fundamento central da ação está na excessiva (e inconstitucional) regressividade do sistema brasileiro, responsável pelo agravamento das desigualdades econômicas e sociais do país.

 Ainda nos termos da ação, a inconstitucionalidade do sistema tributário seria resultante de atos omissivos, como a ausência de tributação de grandes fortunas e dividendos, e por atos comissivos, representados por desonerações e alta carga tributária sobre o consumo. Dentre os pedidos, destaque-se aquele que requer que o tribunal determine, aos Poderes Executivo e Legislativo federais, a elaboração de proposta de reforma tributária que seja capaz de corrigir a regressividade do sistema tributário nacional.

A regressividade do sistema tributário brasileiro é um dado irrefutável: tributamos demasiadamente o consumo, enquanto a renda é tributada em níveis módicos, em comparação com a média dos países da OCDE. Como já destaquei em outras colunas, esse cenário intensi!ca a desigualdade, de diversas perspectivas, como gênero e raça. A questão, porém, é saber se tal elemento pode ser fundamento para a inconstitucionalidade do sistema como um todo. A resposta deve ser dada à luz da análise do papel que o direito tributário exerce na formação e manutenção do Estado.

As diversas teorias sobre a formação do Estado moderno partem de uma premissa comum: a autoridade estatal decorre de um conjunto de regras jurídicas cuja motivação é o desejo coordenado de uma coletividade de constituir uma autoridade que os governe e possua instituições para representá-los. Somado a isso, há uma outra premissa básica para Estado exista como instituição: trata-se da existência (ou a possibilidade de obtenção) de recursos que o sustentem. Sem receitas públicas que sejam capazes de manter e assegurar a autoridade das instituições jurídicas que moldam o Estado do ponto de vista formal, sua existência material e consequente garantia dos direitos por ele assegurados restam comprometidas.

Tomando-se como referência os Estados modernos e ocidentais, tais recursos são providos, em grande parte, pela tributação. Os tributos e o sistema de regras constitutivos da atividade tributária – ou, em um sentido mais amplo, da atividade !nanceira do Estado – são os fatos institucionais que possibilitam a existência material do Estado. Portanto, se de um lado, a vontade de organização coletiva formalizada na concessão de autoridade jurídica a determinadas instituições constituem o arcabouço formal do Estado, a existência de tributos é responsável por sustentar materialmente essas mesmas instituições.

Considerando essa perspectiva, é bastante lógico a!rmar que o modelo de Estado adotado limita e informa a estrutura necessária do sistema tributário que, por sua vez, provê os recursos materiais. Em outras palavras: sendo o sistema de regras que introduz a tributação um elemento formador, constitutivo do Estado, é evidente que o modelo de Estado in”ui nas formas e justi!cativas de atribuição de ônus aos particulares e, assim, na concepção do sistema tributário, que deve re”etir os valores e o modelo daquele Estado que a receita tributária viabiliza do ponto de vista material.

Um olhar específico para o Brasil revela que o sistema tributário previsto na Constituição da República de 1988 deve realizar os valores inerentes ao Estado Social e Democrático de Direito que aquela Constituição institui. Isso implica assumir que a tributação brasileira necessariamente terá contornos distributivos, seja abstrata ou concretamente, por ocasião da criação de normas que prevejam a incidência tributária. Tal se revela pelo fato de o Estado brasileiro mostrar-se comprometido com o ideal de liberalismo político que exige que as instituições jurídicas se organizem a partir do pressuposto de que a distribuição de bens e rendas realizada pelo mercado é injusta, sendo o direito um importante instrumento na garantia de uma melhor distribuição e, como consequência, no atingimento de uma sociedade mais justa e isonômica.

Por essas razões, inclusive, qualquer proposta de reforma tributária que afronte o desiderato de justiça será “agrantemente inconstitucional. A ADPF recém proposta joga novas e lúcidas luzes sobre debate relativo às mudanças no sistema tributário nacional. Sendo conhecida pelo Supremo pode quali!car e contribuir com as discussões no Congresso Nacional, com vistas à construção de um sistema tributário mais justo e realizador dos desideratos da Constituição de 1988.

*Professora de direito tributário e finanças públicas da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas

Fonte: Valor Econômico