Judiciário: Sem alarde, Corte já analisou 19 processos sem a participação de advogados
No meio jurídico, quase ninguém percebeu, nem mesmo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Mas desde abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem julgando questões de mérito de forma virtual, sem as discussões em plenário. Até o momento, os ministros já julgaram 19 recursos eletronicamente. Embora a regra só se aplique a casos de reafirmação de jurisprudência – ou seja, quando já há uma posição dominante do STF sobre a matéria – ela gera um incômodo instantâneo à medida que chega aos ouvidos de advogados. Eles temem violação ao princípio da ampla defesa, já que, com os votos pelo computador, fica eliminada a possibilidade de participarem das sessões plenárias e fazerem sustentação oral. Apontam também possível afronta à publicidade dos julgamentos.”Confesso que o assunto não havia chegado ao nosso conhecimento, não é algo do domínio da maioria”, diz o secretário-geral do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coelho. “Mas como a Ordem não pode concordar com um julgamento que viole prerrogativas do advogado, como defender o cliente oralmente, teremos que discutir o assunto internamente e nos posicionar”, afirma.
No julgamento virtual de mérito, o relator do caso apresenta seu voto pelo computador. A partir daí, os outros ministros têm 20 dias para se manifestar. Assim como nas sessões presenciais, ganha quem tiver os votos da maioria.
O plenário virtual foi usado inicialmente apenas para decidir se um recurso poderia ou não subir para o STF. Os ministros analisam se a discussão tem repercussão geral – ou seja, se transcende o interesse das partes envolvidas. Se isso ocorrer, o caso poderá ser analisado pela Corte suprema.
Mas uma alteração no regimento interno do STF, em dezembro do ano passado, passou a admitir também que alguns recursos sejam decididos a distância. O novo artigo 323-A diz que “o julgamento de mérito de questões com repercussão geral, nos casos de reafirmação de jurisprudência dominante da Corte, também poderá ser realizado por meio eletrônico.” A jurisprudência dominante, em geral, é aquela que já foi definida anteriormente em plenário.
Mas um dos pontos cruciais, segundo especialistas, é que esses julgamentos virtuais poderão formar leading cases que irão ditar o posicionamento das demais Cortes do país. Isso porque, a partir do momento em que a repercussão geral é reconhecida, todos os casos com a mesma discussão ficam suspensos nos tribunais do país inteiro, até que o Supremo se posicione. Presume-se que a decisão do Supremo será depois replicada pelos magistrados. Como a repercussão geral também é um instrumento relativamente novo – começou a ser usada em 2007 – os ministros ainda estão definindo os precedentes que irão guiar o posicionamento dos demais magistrados. E eles estão sendo fixados pelos julgamentos virtuais. Outra preocupação é que a Corte mudou muito sua composição nos últimos anos, e a jurisprudência reafirmada pelo plenário eletrônico poderia refletir uma formação antiga.
Os defensores do método eletrônico argumentam que o objetivo é agilizar os julgamentos, reservando as longas discussões públicas, nas quais os votos podem durar horas, para os casos de maior relevância e sobre os quais ainda não há entendimento firmado. “A medida é tocada pelo princípio da necessidade, pela pressão a que estamos submetidos pelo excesso de processos”, explica o ministro Gilmar Mendes, que, no entanto, votou contra a alteração no regimento, ao lado dos ministros Marco Aurélio e Dias Toffoli.
Já o ministro Marco Aurélio manifesta críticas mais duras à nova modalidade. “Passamos a ter um Supremo virtual, praticamente fictício”, diz o ministro – que, por não estar de acordo com o sistema, evita se posicionar quanto às discussões de fundo por meio eletrônico. “Quando há esta indagação no sítio, coloco não”.
O maior problema, na opinião de Marco Aurélio, é que sem o plenário reunido os ministros não discutem seus posicionamentos, limitando-se a apresentar votos de forma individual. Para ele, uma discussão poderia levar a mudanças de entendimento. “O direito evolui a cada dia. Assim como se pode confirmar a jurisprudência, se pode também rediscutir a matéria. É possível que se chegue à conclusão de que o entendimento anterior não era o mais consentâneo”, afirma.
O advogado Jalígson Hirtácides, de Recife, foi um dos primeiros do país a passar pela experiência do julgamento virtual. “Fiquei estarrecido”, ele diz. “A gente não tem segurança e fica sem defesa, não tem oportunidade de apresentar um memorial.” De acordo com ele, o processo envolve 18 médicos do sistema público de saúde, que discutem no Judiciário, há 26 anos, a eliminação de vantagens remuneratórias de seus salários. Segundo Hirtácides, eles ganharam em todas as instâncias e o processo já estava sendo executado, na fase de liberação do precatório. “Mas a União conseguiu impedir isso através de um recurso ao STF, julgado pelo plenário virtual”, afirma. A decisão tomada eletronicamente virou objeto de novos recursos, ainda não analisados pela Corte.
Fonte: Maíra Magro – Valor Econômico